domingo, 3 de novembro de 2019

ARCADISMO/MATL.COMPLEMENTAR

Bom dia. Segue material complementar sobre o Arcadismo.


O Arcadismo

No século XVIII, as formas artísticas do Barroco já se encontram desgastadas e decadentes. O fortalecimento político da burguesia e o aparecimento dos filósofos iluministas dão origem a um novo quadro sócio-político-cultural e a um público diferente, que necessita de outras fórmulas de expressão. Combate-se a mentalidade religiosa criada pela Contra-Reforma, nega-se a educação jesuítica praticada nas escolas, valoriza-se o estudo científico e as atividades humanas, num verdadeiro retorno à cultura renascentista. A literatura que surge para combater a arte barroca e sua mentalidade religiosa e contraditória é o Neoclassicismo, que objetiva restaurar o equilíbrio por meio da razão.
Na Itália essa influência assumiu feição particular. Conhecida como Arcadismo, inspirava-se na lendária região da Grécia antiga. Segundo a lenda, a Arcádia era dominada pelo deus Pan e habitada por pastores que, vivendo de modo simples e espontâneo, se divertiam cantando, fazendo disputas poéticas e celebrando o amor e o prazer.
Os italianos, procurando imitar a lenda grega, criaram a Arcádia em 1690 - uma academia literária que reunia os escritores com a finalidade de combater o Barroco e difundir os ideais neoclássicos. Para serem coerentes com certos princípios, como simplicidade e igualdade, os cultos literatos árcades usavam roupas e pseudônimos de pastores gregos e reuniam-se em parques e jardins para gozar a vida natural.
No Brasil e em Portugal, a experiência neoclássica na literatura se deu em torno dos modelos do Arcadismo italiano, com a fundação de academias literárias, simulação pastoral, ambiente campestre, etc.
Esses ideais de vida simples e natural vêm ao encontro dos anseios de um novo público consumidor em formação, a burguesia, que historicamente lutava pelo poder e denunciava a vida luxuosa da nobreza nas cortes.


Panorama histórico-cultural
As sementes da revolução já haviam sido lançadas no Renascimento: a crença no homem, o racionalismo e, do ponto de vista político-econômico, o mercantilismo. Esse novo sistema econômico propiciou a formação de capitais e o surgimento de uma nova classe, a burguesia, que se afirma com força política e econômica no século XVIII. A ciência é impulsionada, a máquina a vapor é aperfeiçoada e o trabalho artesanal começa a ser substituído por máquinas. A Inglaterra vive a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, que aos poucos se estende a outros países da Europa e dos Estados Unidos.
O processo industrial atrai os camponeses, ocasionando o crescimento das cidades, o abandono do campo e o aumento das tensões sociais.
Acreditando que, para tirar os homens das trevas da ignorância e das superstições, seria necessário dar-lhes as “luzes” da ciência, procurou-se reunir todo o conhecimento científico e filosófico e divulgá-lo para a maior quantidade possível de indivíduos. Nesse contexto, Diderot e D’Alembert, organizam a Enciclopédia. Entra em cena o IIuminismo, conjunto das tendências ideológicas, filosóficas e científicas desenvolvido no período, consequência da recuperação de um espírito experimental, racional que buscava o saber enciclopédico. Os Iluministas tentavam retomar a postura marcante do Renascimento, subitamente interrompida pelas medidas da Contra-Reforma que influenciaram de modo determinante a estética barroca.
Os Iluministas acreditavam que a ciência, o progresso e a liberdade eram meios de trazer a felicidade aos homens. Não aceitavam o Estado absolutista, pregavam a igualdade de poderes e o direito de propriedade. Era a ideologia da burguesia em ascensão, que resultou na Revolução Francesa, na Independência dos Estados Unidos e, no cenário brasileiro, na Inconfidência Mineira.
No plano político, os iluministas rejeitaram o autoritarismo dos reis absolutistas, argumentando que todos os homens são dotados igualmente de razão e só a ela devem obedecer. Negavam assim os privilégios da nobreza e propunham igualdade de direitos e deveres entre os homens. Começaram então a se estabelecer as ideias de democracia e igualdade social que envolvem o mundo contemporâneo.
No plano religioso, os iluministas acabaram por chocar-se com as ideias dogmáticas da Igreja. A fé pressupõe crer sem examinar, já os iluministas queriam submeter todas as questões que envolvem a realidade à análise da razão.

Características da linguagem árcade
Desenvolvimento de alguns temas clássicos, referidos por expressões latinas:

·         Fugere urbem (fuga da cidade) e Locus amoenus (lugar aprazível, tranquilo): os árcades defendem o bucolismo como ideal de vida, o viver de modo simples e natural, no campo, longe dos centros urbanos. Tal princípio era reforçado por Rousseau, segundo o qual afirma que o homem nasce bom, a civilização e que corrompe seus costumes.
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou o retiro da paz não tem povoado
Cláudio Manuel da Costa
Trato:lugar ou tipo de vida.
Civil correspondência: a vida na cidade.
Nos versos acima, é ressaltada a violência da cidade, em oposição à paz no campo.

·          Aurea Mediocritas (vida medíocre materialmente, mas rica em realizações espirituais): a idealização de uma vida pobre e feliz no campo, em oposição à vida luxuosa e triste na cidade.

Se não tivermos lãs e peles finas,
podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Tomás Antônio Gonzaga
Cosido: tecido, costurado.
Nos versos acima são exaltados o trabalho manual e o sentimento, em oposição ao artificialismo e às facilidades da vida urbana.

·          Inutilia truncat (cortar o inútil). Simplicidade linguística para fazer frente ao rebuscamento do Barroco.

Vemos ainda:
Ideias Iluministas: como expressão artística da burguesia, o Arcadismo veicula certos ideais políticos e ideológicos dessa classe, formulados pelo Iluminismo, movimento filosófico constituído por pensadores que defendiam o uso da razão, em contraposição à fé cristã, e combatiam o Absolutismo. Ideias de liberdade, justiça e igualdade social estão presentes em alguns textos da época.
 Imitação dos antigos, principalmente nas referências à mitologia e na observância das regras de composição.
 Designação dos poetas e suas musas como pastores e pastoras, que adotavam pseudônimos latinos.
Carpe diem : o desejo de aproveitar o dia e a vida enquanto é possível – tema explorado pelo Barroco – é retomado pelos árcades e faz parte do convite amoroso como vemos nos versos de Tomás Antônio Gonzaga:

Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos amores
Sobre nossas cabeças
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que passa,
Também, Marília, morre.

O Arcadismo em Portugal

Em Portugal, o Arcadismo estende-se desde 1756, com a fundação da Arcádia Lusitana, até 1825, com a publicação do poema "Camões", de Almeida Garret, considerado o marco inicial do Romantismo português.
A principal expressão literária desse período, Manuel Maria du Bocage, foi um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos.

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 – 1805)
O poeta português também é conhecido com o pseudônimo árcade de Elmano Sadino (Elmano é um anagrama de Manuel e Sadino é relativo ao rio Sado, que corta a cidade de Setúbal, onde nasceu).
Além das inúmeras experiências amorosas, ele viveu aventuras nas colônias portuguesas do Oriente como na Índia (Goa) e na China (Macau), teve quase o mesmo caminho que Camões. Como ele, Bocage também se incorporou em companhias militares, lutou na guerra, naufragou, amou muitas mulheres e sofreu com elas, foi preso e morreu na miséria.
Podemos identificar na fase inicial da poesia de Bocage uma acomodação aos clichês árcades, como vemos na composição seguinte:

Já se afastou de nos o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:
Varrendo os ares o sutil nordeste
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste:
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo

Bocage. Obras de Bocage

Identificamos nesse soneto a composição de um locus amoenus, marcado pela natureza idílica pronta para receber os amantes. O eu lírico convida sua amada Marília a desfrutar das perfeições da natureza. Vemos, ainda, o desenvolvimento do tema do fugere urbem (“deixa louvar da corte a vã grandeza”), bem de acordo com o modelo árcade.

O poeta pré-romântico
Sua vertente erótico-satírica tem uma linguagem obscena e agressiva. Escreveu também poemas líricos, cujos temas fundamentais são o amor, a morte, o destino, a natureza, o conflito entre o sentimento e a razão e o egocentrismo.
Vários poemas de Bocage antecipam tendências do Romantismo, são os pré-românticos, os quais revelam ora a submissão total do amor, ora uma obsessão pela morte.
Veja os exemplos abaixo:

Chorosos versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza e sem brandura, Urdidos pela mão da Desventura, Pela baça Tristeza envenenados: Vede a luz, não busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura; Se os ditosos vos lerem sem ternura, Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.
Não vos inspire, ó versos, cobardia Da sátira mordaz o furor louco, Da maldizente voz a tirania. Desculpa tendes, se valeis tão pouco; Que não pode cantar com melodia Um peito, de gemer cansado e rouco.
Bocage. Obras de Bocage
.................................................................
Fiei-me nos sorrisos da ventura, Em mimos feminis, como fui louco! Vi raiar o prazer; porém tão pouco Momentâneo relâmpago não dura: No meio agora desta selva escura, Dentro deste penedo húmido e ouco, Pareço, até no tom lúgubre, e rouco Triste sombra a carpir na sepultura: Que estância para mim tão própria é esta! Causais-me um doce, e fúnebre transporte, Áridos matos, lôbrega floresta! Ah! não me roubou tudo a negra sorte: Inda tenho este abrigo, inda me resta O pranto, a queixa, a solidão e a morte.
Bocage. Obras de Bocage

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo; Paixão requer paixão; fervor, e extremo; Com extremo e fervor se recompensa.
Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença! Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo; Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo; Em sombras a razão se me condensa.
Tu só tens gratidão, só tens brandura, E antes que um coração pouco amoroso Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.
Talvez me enfadaria aspecto iroso; Mas de teu peito a lânguida ternura Tem-se cativo, e não me faz ditoso.

Meu ser evaporei na lida insana
Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava; Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana. De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos. Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores. Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, Que elas buscam piedade e não louvores. Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lágrimas e amores; Notai dos males seus a imensidade, A curta duração dos seus favores.
E se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns, cuja aparência Indique festival contentamento, Crede, ó mortais, que foram com violência Escritos pela mão do Fingimento, Cantados pela voz da Dependência.

O Arcadismo no Brasil

O Arcadismo no Brasil teve início no ano de 1768, com a publicação do livro Obras de Cláudio Manuel da Costa.
O eixo do Brasil-colônia se deslocara do nordeste para a região centro-sul, Rio de Janeiro e, especialmente, Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto. Esse deslocamento deu-se com o declínio da produção açucareira no Nordeste e ao desenvolvimento do ouro e do diamante em Minas Gerais. Essa intensa atividade econômica deu ensejo ao aparecimento da vida urbana. Os poetas árcades brasileiros estudaram em Portugal e de lá trouxeram ideais libertárias que fervilhavam pela Europa inteira.
Nesse período Portugal explorava suas colônias a fim de conseguir suprir seu déficit econômico. A economia brasileira estava voltada para a mineração e, portanto, ao estado de Minas Gerais. No entanto, os minérios começaram a ficar escassos e os impostos cobrados por Portugal aos colonos ficaram exorbitantes.
Surgiu, então, no Brasil, a necessidade de buscar uma forma de se desvincular do seu explorador. Logo, ideais revolucionários começaram a se desenvolver aqui, sob influências das Revoluções Industrial e Francesa, ocorridas na Europa, bem como do exemplo da Independência dos Estados Unidos.
Enquanto na Europa surgia o trabalho assalariado, o Brasil ainda vivia o tempo de escravidão. Há um processo de revoltas no Brasil, tendo como a mais eloquente a Inconfidência Mineira, movimento que teve envolvimento dos escritores árcades, como Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa, além do dentista Tiradentes.
Além das características trazidas da Europa, o Arcadismo no Brasil adquiriu algumas particularidades temáticas abaixo apontadas:
 Inserção de temas e motivos não existentes no modelo europeu, como a paisagem tropical, elementos da flora e da fauna do Brasil e alguns aspectos peculiares da colônia, como a mineração, por exemplo;
 Episódios da história do país, nas poesias heróicas;
 O índio como tema literário.

Esses novos temas já prenunciam o que seria o Romantismo no Brasil: a representação do indígena e da cor local.
Os principais autores árcades são: Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Basílio da Gama, Silva Alvarenga e Frei José de Santa Rita Durão.

Cláudio Manuel da Costa (1729 – 1789)
O introdutor do Arcadismo no Brasil estudou Direito em Coimbra e voltou à terra natal para exercer a profissão e cuidar de sua herança. Apesar da vida pacata em Vila Rica, foi ele uma das vítimas do rigor com que o governo português tratou os participantes da Inconfidência Mineira. Preso em 1789, foi encontrado enforcado em seu cárcere após um interrogatório. Há a hipótese de ter sido assassinado.
Conhecido como poeta de transição sua poesia ainda está ligada ao cultismo barroco, em alguns aspectos como o uso de inversões e figurações (“negro manto”). Observe:
Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.

Sua obra lírica é constituída, principalmente, de éclogas e sonetos. Dentre elas, são dignas de destaque Obras poéticas - obra que introduziu o Arcadismo.
Na épica escreveu o poema Vila Rica, inspirado nas epopéias clássicas, que trata da penetração bandeirante, da descoberta das minas, da fundação de Vila Rica e de revoltas locais.

Enfim serás cantada, Vila Rica,
Teu nome alegre notícia, e já clamava;
Viva o senado! viva! repetia
Itamonte, que ao longe o eco ouvia.
O autor cultivou a poesia lírica e épica. Na lírica, destaque para a desilusão amorosa (uso do pseudônimo Glauceste Satúrnio). O eu lírico pastor lamenta-se em razão de não ser correspondido por sua musa inspiradora, Nise, ou por se encontrar num lugar de grande beleza natural sem a companhia da mulher amada. Nise representa o ideal da mulher amada inalcançável, nítido traço do reaproveitamento do neoplatonismo amoroso.
LXXX Quando cheios de gosto, e de alegria Estes campos diviso florescentes, Então me vêm as lágrimas ardentes Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.
Aquele mesmo objeto, que desvia Do humano peito as mágoas inclementes, Esse mesmo em imagens diferentes Toda a minha tristeza desafia. Se das flores a bela contextura Esmalta o campo na melhor fragrância, Para dar uma idéia da ventura; Como, ó Céus, para os ver terei constância, Se cada flor me lembra a formosura Da bela causadora de minha ânsia?

Exemplos de sonetos de Cláudio Manuel da Costa
Quem deixa o trato pastoril, amado Pela ingrata, civil correspondência, Ou desconhece o rosto da violência, Ou do retiro a paz não tem provado. Que bem é ver nos campos transladado No gênio do pastor, o da inocência! E que mal é no trato, e na aparência Ver sempre o cortesão dissimulado! Ali respira amor sinceridade; Aqui sempre a traição seu rosto encobre; Um só trata a mentira, outro a verdade. Ali não há fortuna, que soçobre; Aqui quanto se observa, é variedade: Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
.........................................................................................................................................................
Para cantar de amor tenros cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um peregrino, Se faz digno entre vós também de fama.
.........................................................................................................................................................
Pastores, que levais ao monte o gado, Vêde lá como andais por essa serra; Que para dar contágio a toda a terra, Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me vêdes) tão pesado; E a pastora infiel, que me faz guerra, É a mesma, que em seu semblante encerra A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde comigo, Vereis a formosura, que eu adoro; Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro; Que se seguir quiserdes, o que eu sigo, Chorareis, ó pastores, o que eu choro.

Tomás Antônio Gonzaga (1744 – 1810)
Nasceu no Porto, em Portugal no ano de 1744. Veio ainda menino para o Brasil. Posteriormente, voltou a Portugal e se formou em Coimbra, onde teve contato com as ideias iluministas e árcades. A partir de 1782 passou a exercer o cargo de ouvidor em Vila Rica. Começou ali sua amizade com Cláudio Manuel da Costa e seu romance com Maria Joaquina Dorotéia de Seixas, que passaria a ser identificada com a Marília de seus poemas. Foi denunciado como conspirador na Inconfidência Mineira. Preso, foi degredado para Moçambique, onde morreu.
Escreveu as liras Marília de Dirceu, poemas centrados no tema de amor do pastor Dirceu pela jovem Marília.
Marília de Dirceu apresenta basicamente duas partes: a primeira pode ser identificada com o período de conquista amorosa e namoro; a segunda pertence à fase da prisão do poeta, veja os versos:
1ª parte
Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Purpúreas folhas de rosa,
brancas folhas de jasmim.
Dos rubins mais preciosos
os seus beiços são formados,
os seus dentes delicados
são pedaços de mafim.
2ª parte
Estou no inferno, estou, Marília bela;
e numa coisa só é mais humana
a minha dura estrela;
uns não podem mover do inferno os passos;
eu pretendo voar cedo
à glória dos teus braços.

As experiências dão à obra de Gonzaga maior subjetividade, espontaneidade e emotividade, traços que foram aprofundados pelo movimento literário subsequente, o Romantismo.
Leia a seguir mais um fragmento da lira Marília de Dirceu:
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela, graças à minha estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores que habitam este monte
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste,
nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
E bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o céu, gentil pastora,
para glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
(...)Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
aqui descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço;
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
touca rei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Depois que nos ferir a mão da morte,
ou seja neste monte, ou noutra serra,
nossos corpos terão, terão a sorte
de consumir os dous a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os pastores:
"Quem quiser ser feliz nos seus amores,
siga os exemplos que nos deram estes".
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Minha bela Marília, tudo passa;
a sorte deste mundo é mal segura;
se vem depois dos males a ventura,
vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos deuses
sujeitos ao poder do ímpio fado:
Apolo já fugiu do céu brilhante,
já foi pastor de gado.
A devorante mão da negra morte
acaba de roubar o bem que temos,
até na triste campa não podemos
zombar do braço da inconstante sorte:
qual fica no sepulcro,
que seus avós ergueram, descansado;
qual no campo, e lhe arranca os frios ossos
ferro do torto arado.
Ah! enquanto os destinos impiedosos
não voltam contra nós a face irada,
façamos, sim, façamos, doce amada,
os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração que, frouxo,
a grata posse de seu bem difere,
a si, Marília, a si próprio rouba.
e a si próprio fere.
Ornemos nossas testas com as flores,
e façamos de feno um brando leito;
prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
gozemos do prazer de sãos amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
e para nós o tempo que se passa
também, Marília, morre.
Com os anos, Marília, o gosto falta;
e se entorpece o corpo já cansado;
triste, o velho cordeiro está deitado;
e o leve filho, sempre alegre, salta.
A mesma formosura
é dote que só goza a mocidade:
rugam-se as faces, o cabelo alveja,
mal chega a longa idade.
Que havemos de esperar, Marília bela?
que vão passando os florescentes dias?
As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
aproveite-se o tempo, antes que faça
o estrago de roubar ao corpo as forças,
e ao semblante a graça!

Tomás Antônio Gonzaga escreveu também Cartas Chilenas, um longo poema satírico que faz uma crítica ao então governador da capitania, Luis da Cunha Meneses.
A obra é um jogo de disfarces: Fanfarrão Minésio é o pseudônimo do governador; chilenas equivale a mineiras, Santiago, de onde são assinadas, equivale a Vila Rica. O autor das cartas é Critilo, e seu destinatário, como Doroteu.

1ª Carta (fragmentos)
Não cuides, Doroteu, que vou contar-te por verdadeira história uma novela da classe das patranhas, que nos contam verbosos navegantes, que já deram ao globo deste mundo volta inteira. Uma velha madrasta me persiga, uma mulher zelosa me atormente e tenha um bando de gatunos filhos, que um chavo não me deixem, se este chefe não fez ainda mais do que eu refiro. ................................................................................ Tem pesado semblante, a cor é baça, o corpo de estatura um tanto esbelta, feições compridas e olhadura feia; tem grossas sobrancelhas, testa curta, nariz direito e grande, fala pouco em rouco, baixo som de mau falsete; sem ser velho, já tem cabelo ruço, e cobre este defeito e fria calva à força de polvilho que lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo no gordo rocinante escarranchado, as longas calças pelo embigo atadas, amarelo colete, e sobre tudo vestida uma vermelha e justa farda.



Nenhum comentário:

Postar um comentário