O
Arcadismo
No século XVIII, as formas
artísticas do Barroco já se encontram desgastadas e decadentes. O
fortalecimento político da burguesia e o aparecimento dos filósofos iluministas
dão origem a um novo quadro sócio-político-cultural e a um público diferente,
que necessita de outras fórmulas de expressão. Combate-se a mentalidade
religiosa criada pela Contra-Reforma, nega-se a educação jesuítica praticada
nas escolas, valoriza-se o estudo científico e as atividades humanas, num
verdadeiro retorno à cultura renascentista. A literatura que surge para
combater a arte barroca e sua mentalidade religiosa e contraditória é o Neoclassicismo,
que objetiva restaurar o equilíbrio por meio da razão.
Na Itália essa influência assumiu
feição particular. Conhecida como Arcadismo, inspirava-se na lendária região da
Grécia antiga. Segundo a lenda, a Arcádia era dominada pelo deus Pan e
habitada por pastores que, vivendo de modo simples e espontâneo, se divertiam
cantando, fazendo disputas poéticas e celebrando o amor e o prazer.
Os italianos, procurando imitar a
lenda grega, criaram a Arcádia em 1690 - uma academia literária que reunia os
escritores com a finalidade de combater o Barroco e difundir os ideais
neoclássicos. Para serem coerentes com certos princípios, como simplicidade e
igualdade, os cultos literatos árcades usavam roupas e pseudônimos de pastores
gregos e reuniam-se em parques e jardins para gozar a vida natural.
No Brasil e em Portugal, a
experiência neoclássica na literatura se deu em torno dos modelos do Arcadismo
italiano, com a fundação de academias literárias, simulação pastoral, ambiente
campestre, etc.
Esses ideais de vida simples e
natural vêm ao encontro dos anseios de um novo público consumidor em formação,
a burguesia, que historicamente lutava pelo poder e denunciava a vida luxuosa
da nobreza nas cortes.
Panorama histórico-cultural
As sementes da
revolução já haviam sido lançadas no Renascimento: a crença no homem, o
racionalismo e, do ponto de vista político-econômico, o mercantilismo. Esse
novo sistema econômico propiciou a formação de capitais e o surgimento de uma
nova classe, a burguesia, que se afirma com força política e econômica no
século XVIII. A ciência é impulsionada, a máquina a vapor é aperfeiçoada e o
trabalho artesanal começa a ser substituído por máquinas. A Inglaterra vive a
Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, que aos poucos se estende a
outros países da Europa e dos Estados Unidos.
O processo
industrial atrai os camponeses, ocasionando o crescimento das cidades, o abandono
do campo e o aumento das tensões sociais.
Acreditando que,
para tirar os homens das trevas da ignorância e das superstições, seria
necessário dar-lhes as “luzes” da ciência, procurou-se reunir todo o
conhecimento científico e filosófico e divulgá-lo para a maior quantidade
possível de indivíduos. Nesse contexto, Diderot e D’Alembert, organizam a
Enciclopédia. Entra em cena o IIuminismo, conjunto das tendências
ideológicas, filosóficas e científicas desenvolvido no período, consequência da
recuperação de um espírito experimental, racional que buscava o saber
enciclopédico. Os Iluministas tentavam retomar a postura marcante do
Renascimento, subitamente interrompida pelas medidas da Contra-Reforma que
influenciaram de modo determinante a estética barroca.
Os Iluministas
acreditavam que a ciência, o progresso e a liberdade eram meios de trazer a
felicidade aos homens. Não aceitavam o Estado absolutista, pregavam a igualdade
de poderes e o direito de propriedade. Era a ideologia da burguesia em
ascensão, que resultou na Revolução Francesa, na Independência dos Estados
Unidos e, no cenário brasileiro, na Inconfidência Mineira.
No plano
político, os iluministas rejeitaram o autoritarismo dos reis absolutistas,
argumentando que todos os homens são dotados igualmente de razão e só a ela
devem obedecer. Negavam assim os privilégios da nobreza e propunham igualdade
de direitos e deveres entre os homens. Começaram então a se estabelecer as
ideias de democracia e igualdade social que envolvem o mundo contemporâneo.
No plano
religioso, os iluministas acabaram por chocar-se com as ideias dogmáticas da
Igreja. A fé pressupõe crer sem examinar, já os iluministas queriam submeter
todas as questões que envolvem a realidade à análise da razão.
Características da linguagem árcade
Desenvolvimento de alguns temas clássicos, referidos por
expressões latinas:
·
Fugere urbem (fuga da cidade) e Locus amoenus (lugar aprazível,
tranquilo): os árcades defendem o bucolismo como ideal de vida, o viver de modo
simples e natural, no campo, longe dos centros urbanos. Tal princípio era
reforçado por Rousseau, segundo o qual afirma que o homem nasce bom, a
civilização e que corrompe seus costumes.
Quem
deixa o trato pastoril amado
Pela
ingrata, civil correspondência
Ou
desconhece o rosto da violência,
Ou o
retiro da paz não tem povoado
Cláudio
Manuel da Costa
Trato:lugar ou tipo de vida.
Civil
correspondência:
a vida na cidade.
Nos versos
acima, é ressaltada a violência da cidade, em oposição à paz no campo.
·
Aurea Mediocritas (vida medíocre
materialmente, mas rica em realizações espirituais): a idealização de uma vida
pobre e feliz no campo, em oposição à vida luxuosa e triste na cidade.
Se não
tivermos lãs e peles finas,
podem
mui bem cobrir as carnes nossas
as
peles dos cordeiros mal curtidas,
e os
panos feitos com lãs mais grossas.
Mas ao
menos será o teu vestido
Por
mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Tomás
Antônio Gonzaga
Cosido: tecido, costurado.
Nos versos
acima são exaltados o trabalho manual e o sentimento, em oposição ao
artificialismo e às facilidades da vida urbana.
·
Inutilia truncat (cortar o
inútil). Simplicidade linguística para fazer frente ao rebuscamento do Barroco.
Vemos
ainda:
Ideias Iluministas: como expressão artística da burguesia, o Arcadismo
veicula certos ideais políticos e ideológicos dessa classe, formulados pelo
Iluminismo, movimento filosófico constituído por pensadores que defendiam o uso
da razão, em contraposição à fé cristã, e combatiam o Absolutismo. Ideias de
liberdade, justiça e igualdade social estão presentes em alguns textos da
época.
Imitação dos antigos, principalmente nas referências à mitologia e na
observância das regras de composição.
Designação dos poetas e suas musas como pastores e pastoras, que adotavam pseudônimos
latinos.
Carpe
diem : o desejo de aproveitar o dia e a vida enquanto é possível – tema
explorado pelo Barroco – é retomado pelos árcades e faz parte do convite
amoroso como vemos nos versos de Tomás Antônio Gonzaga:
Prendamo-nos,
Marília, em laço estreito,
Gozemos
do prazer de sãos amores
Sobre
nossas cabeças
Sem que
o possam deter, o tempo corre;
E para
nós o tempo, que passa,
Também,
Marília, morre.
O
Arcadismo em Portugal
Em Portugal, o Arcadismo
estende-se desde 1756, com a fundação da Arcádia Lusitana, até 1825, com a
publicação do poema "Camões", de Almeida Garret, considerado o marco
inicial do Romantismo português.
A principal expressão literária
desse período, Manuel Maria du Bocage, foi um dos maiores poetas portugueses de
todos os tempos.
Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765 – 1805)
O poeta português também é
conhecido com o pseudônimo árcade de Elmano Sadino (Elmano é um anagrama de
Manuel e Sadino é relativo ao rio Sado, que corta a cidade de Setúbal, onde
nasceu).
Além das inúmeras experiências
amorosas, ele viveu aventuras nas colônias portuguesas do Oriente como na Índia
(Goa) e na China (Macau), teve quase o mesmo caminho que Camões. Como ele,
Bocage também se incorporou em companhias militares, lutou na guerra,
naufragou, amou muitas mulheres e sofreu com elas, foi preso e morreu na
miséria.
Podemos identificar na fase
inicial da poesia de Bocage uma acomodação aos clichês árcades, como vemos na
composição seguinte:
Já
se afastou de nos o Inverno agreste
Envolto
nos seus úmidos vapores;
A
fértil primavera, a mãe das flores
O
prado ameno de boninas veste:
Varrendo
os ares o sutil nordeste
Os
torna azuis; as aves de mil cores
Adejam
entre Zéfiros e Amores,
E
toma o fresco Tejo a cor celeste:
Vem,
ó Marília, vem lograr comigo
Destes
alegres campos a beleza,
Destas
copadas árvores o abrigo:
Deixa
louvar da corte a vã grandeza:
Quanto
me agrada mais estar contigo
Bocage.
Obras de Bocage
Identificamos nesse soneto a
composição de um locus amoenus, marcado pela natureza idílica pronta
para receber os amantes. O eu lírico convida sua amada Marília a desfrutar das
perfeições da natureza. Vemos, ainda, o desenvolvimento do tema do fugere
urbem (“deixa louvar da corte a vã grandeza”), bem de acordo com o modelo
árcade.
O
poeta pré-romântico
Sua
vertente erótico-satírica tem uma linguagem obscena e agressiva. Escreveu
também poemas líricos, cujos temas fundamentais são o amor, a morte, o destino,
a natureza, o conflito entre o sentimento e a razão e o egocentrismo.
Vários
poemas de Bocage antecipam tendências do Romantismo, são os pré-românticos, os
quais revelam ora a submissão total do amor, ora uma obsessão pela morte.
Veja
os exemplos abaixo:
Chorosos
versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza e sem brandura, Urdidos pela mão
da Desventura, Pela baça Tristeza envenenados: Vede a luz, não busqueis,
desesperados, No mudo esquecimento a sepultura; Se os ditosos vos lerem sem
ternura, Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.
Não vos
inspire, ó versos, cobardia Da sátira mordaz o furor louco, Da maldizente voz a
tirania. Desculpa tendes, se valeis tão pouco; Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.
Bocage.
Obras de Bocage
.................................................................
Fiei-me
nos sorrisos da ventura, Em mimos feminis, como fui louco! Vi raiar o prazer;
porém tão pouco Momentâneo relâmpago não dura: No meio agora desta selva
escura, Dentro deste penedo húmido e ouco, Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura: Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte, Áridos matos, lôbrega floresta! Ah!
não me roubou tudo a negra sorte: Inda tenho este abrigo, inda me resta O
pranto, a queixa, a solidão e a morte.
Bocage.
Obras de Bocage
A
frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa
que se eleva a grau supremo; Paixão requer paixão; fervor, e extremo; Com
extremo e fervor se recompensa.
Vê
qual sou, vê qual és, vê que diferença! Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu
gemo; Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo; Em sombras a razão se me
condensa.
Tu
só tens gratidão, só tens brandura, E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.
Talvez
me enfadaria aspecto iroso; Mas de teu peito a lânguida ternura Tem-se cativo,
e não me faz ditoso.
Meu
ser evaporei na lida insana
Meu
ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava; Ah! cego eu
cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana. De que
inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a
Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres,
sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo
vos sumiu dos desenganos. Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.
Incultas
produções da mocidade
Exponho
a vossos olhos, ó leitores. Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, Que elas
buscam piedade e não louvores. Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus
suspiros, lágrimas e amores; Notai dos males seus a imensidade, A curta duração
dos seus favores.
E
se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns, cuja aparência Indique
festival contentamento, Crede, ó mortais, que foram com violência Escritos pela
mão do Fingimento, Cantados pela voz da Dependência.
O Arcadismo no Brasil
O Arcadismo no Brasil teve início
no ano de 1768, com a publicação do livro Obras de Cláudio Manuel da
Costa.
O eixo do Brasil-colônia se
deslocara do nordeste para a região centro-sul, Rio de Janeiro e,
especialmente, Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto. Esse deslocamento deu-se
com o declínio da produção açucareira no Nordeste e ao desenvolvimento do ouro
e do diamante em Minas Gerais. Essa intensa atividade econômica deu ensejo ao
aparecimento da vida urbana. Os poetas árcades brasileiros estudaram em
Portugal e de lá trouxeram ideais libertárias que fervilhavam pela Europa
inteira.
Nesse período Portugal explorava
suas colônias a fim de conseguir suprir seu déficit econômico. A economia
brasileira estava voltada para a mineração e, portanto, ao estado de Minas
Gerais. No entanto, os minérios começaram a ficar escassos e os impostos
cobrados por Portugal aos colonos ficaram exorbitantes.
Surgiu, então, no Brasil, a
necessidade de buscar uma forma de se desvincular do seu explorador. Logo,
ideais revolucionários começaram a se desenvolver aqui, sob influências das
Revoluções Industrial e Francesa, ocorridas na Europa, bem como do exemplo da
Independência dos Estados Unidos.
Enquanto na Europa surgia o
trabalho assalariado, o Brasil ainda vivia o tempo de escravidão. Há um
processo de revoltas no Brasil, tendo como a mais eloquente a Inconfidência
Mineira, movimento que teve envolvimento dos escritores árcades, como Tomás
Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa, além do dentista
Tiradentes.
Além das características trazidas
da Europa, o Arcadismo no Brasil adquiriu algumas particularidades temáticas
abaixo apontadas:
Inserção de temas e motivos não
existentes no modelo europeu, como a paisagem tropical, elementos da flora e da
fauna do Brasil e alguns aspectos peculiares da colônia, como a mineração, por
exemplo;
Episódios da história do país,
nas poesias heróicas;
O índio como tema literário.
Esses novos temas já prenunciam o
que seria o Romantismo no Brasil: a representação do indígena e da cor local.
Os principais autores árcades
são: Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Basílio da Gama, Silva
Alvarenga e Frei José de Santa Rita Durão.
Cláudio Manuel da Costa (1729 –
1789)
O introdutor do Arcadismo no
Brasil estudou Direito em Coimbra e voltou à terra natal para exercer a
profissão e cuidar de sua herança. Apesar da vida pacata em Vila Rica, foi ele
uma das vítimas do rigor com que o governo português tratou os participantes da
Inconfidência Mineira. Preso em 1789, foi encontrado enforcado em seu cárcere
após um interrogatório. Há a hipótese de ter sido assassinado.
Conhecido como poeta de transição
sua poesia ainda está ligada ao cultismo barroco, em alguns aspectos como o uso
de inversões e figurações (“negro manto”). Observe:
Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite
escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama
brilhadora.
Sua obra lírica é constituída,
principalmente, de éclogas e sonetos. Dentre elas, são dignas de destaque Obras
poéticas - obra que introduziu o Arcadismo.
Na épica escreveu o poema Vila
Rica, inspirado nas epopéias clássicas, que trata da penetração bandeirante,
da descoberta das minas, da fundação de Vila Rica e de revoltas locais.
Enfim
serás cantada, Vila Rica,
Teu
nome alegre notícia, e já clamava;
Viva
o senado! viva! repetia
Itamonte,
que ao longe o eco ouvia.
O autor cultivou a poesia lírica
e épica. Na lírica, destaque para a desilusão amorosa (uso do pseudônimo
Glauceste Satúrnio). O eu lírico pastor lamenta-se em razão de não ser
correspondido por sua musa inspiradora, Nise, ou por se encontrar num lugar de
grande beleza natural sem a companhia da mulher amada. Nise representa o ideal
da mulher amada inalcançável, nítido traço do reaproveitamento do neoplatonismo
amoroso.
LXXX Quando cheios de gosto, e
de alegria Estes campos diviso florescentes, Então me vêm as lágrimas ardentes
Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.
Aquele mesmo objeto, que desvia
Do humano peito as mágoas inclementes, Esse mesmo em imagens diferentes Toda a
minha tristeza desafia. Se das flores a bela contextura Esmalta o campo na
melhor fragrância, Para dar uma idéia da ventura; Como, ó Céus, para os ver
terei constância, Se cada flor me lembra a formosura Da bela causadora de minha
ânsia?
Exemplos
de sonetos de Cláudio Manuel da Costa
Quem
deixa o trato pastoril, amado Pela ingrata, civil correspondência, Ou
desconhece o rosto da violência, Ou do retiro a paz não tem provado. Que bem é
ver nos campos transladado No gênio do pastor, o da inocência! E que mal é no
trato, e na aparência Ver sempre o cortesão dissimulado! Ali respira amor
sinceridade; Aqui sempre a traição seu rosto encobre; Um só trata a mentira,
outro a verdade. Ali não há fortuna, que soçobre; Aqui quanto se observa, é
variedade: Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
.........................................................................................................................................................
Para cantar de amor tenros
cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:
Já
vós vistes, que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira
de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados.
Bem
sei, que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes
influiu na lira estro divino:
O
canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um peregrino, Se
faz digno entre vós também de fama.
.........................................................................................................................................................
Pastores,
que levais ao monte o gado, Vêde lá como andais por essa serra; Que para dar
contágio a toda a terra, Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu
ando (vós me vêdes) tão pesado; E a pastora infiel, que me faz guerra, É a
mesma, que em seu semblante encerra A causa de um martírio tão cansado.
Se
a quereis conhecer, vinde comigo, Vereis a formosura, que eu adoro; Mas não;
tanto não sou vosso inimigo:
Deixai,
não a vejais; eu vo-lo imploro; Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
Tomás
Antônio Gonzaga (1744 – 1810)
Nasceu no Porto, em Portugal no
ano de 1744. Veio ainda menino para o Brasil. Posteriormente, voltou a Portugal
e se formou em Coimbra, onde teve contato com as ideias iluministas e árcades.
A partir de 1782 passou a exercer o cargo de ouvidor em Vila Rica. Começou ali
sua amizade com Cláudio Manuel da Costa e seu romance com Maria Joaquina
Dorotéia de Seixas, que passaria a ser identificada com a Marília de
seus poemas. Foi denunciado como conspirador na Inconfidência Mineira. Preso,
foi degredado para Moçambique, onde morreu.
Escreveu as liras Marília de
Dirceu, poemas centrados no tema de amor do pastor Dirceu pela jovem
Marília.
Marília de Dirceu apresenta basicamente duas
partes: a primeira pode ser identificada com o período de conquista amorosa e
namoro; a segunda pertence à fase da prisão do poeta, veja os versos:
1ª
parte
Na
sua face mimosa,
Marília,
estão misturadas
Purpúreas
folhas de rosa,
brancas
folhas de jasmim.
Dos
rubins mais preciosos
os
seus beiços são formados,
os seus
dentes delicados
são
pedaços de mafim.
2ª
parte
Estou
no inferno, estou, Marília bela;
e numa
coisa só é mais humana
a minha
dura estrela;
uns não
podem mover do inferno os passos;
eu
pretendo voar cedo
à
glória dos teus braços.
As
experiências dão à obra de Gonzaga maior subjetividade, espontaneidade e
emotividade, traços que foram aprofundados pelo movimento literário
subsequente, o Romantismo.
Leia
a seguir mais um fragmento da lira Marília de Dirceu:
Eu,
Marília, não sou algum vaqueiro,
que
viva de guardar alheio gado,
de
tosco trato, de expressões grosseiro,
dos
frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho
próprio casal e nele assisto;
dá-me
vinho, legume, fruta, azeite;
das
brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais
as finas lãs, de que me visto.
Graças,
Marília bela, graças à minha estrela!
Eu vi o
meu semblante numa fonte:
dos
anos inda não está cortado;
os
pastores que habitam este monte
respeitam
o poder do meu cajado.
Com tal
destreza toco a sanfoninha,
que
inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som
dela concerto a voz celeste,
nem
canto letra que não seja minha.
Graças,
Marília bela,
graças
à minha estrela!
Mas
tendo tantos dotes da ventura,
só
apreço lhes dou, gentil pastora,
depois
que o teu afeto me segura
que
queres do que tenho ser senhora.
E bom,
minha Marília, é bom ser dono
de um
rebanho, que cubra monte e prado;
porém,
gentil pastora, o teu agrado
vale
mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças,
Marília bela,
graças
à minha estrela!
Os teus
olhos espalham luz divina,
a quem
a luz do sol em vão se atreve;
papoila
ou rosa delicada e fina
te
cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus
cabelos são uns fios d'ouro;
teu
lindo corpo bálsamos vapora.
Ah!
não, não fez o céu, gentil pastora,
para
glória de amor igual tesouro!
Graças,
Marília bela,
graças
à minha estrela!
(...)Irás
a divertir-te na floresta,
sustentada,
Marília, no meu braço;
aqui
descansarei a quente sesta,
dormindo
um leve sono em teu regaço;
enquanto
a luta jogam os pastores,
e
emparelhados correm nas campinas,
touca
rei teus cabelos de boninas,
nos
troncos gravarei os teus louvores.
Graças,
Marília bela,
graças
à minha estrela!
Depois
que nos ferir a mão da morte,
ou
seja neste monte, ou noutra serra,
nossos
corpos terão, terão a sorte
de
consumir os dous a mesma terra.
Na
campa, rodeada de ciprestes,
lerão
estas palavras os pastores:
"Quem
quiser ser feliz nos seus amores,
siga
os exemplos que nos deram estes".
Graças,
Marília bela,
graças
à minha estrela!
Minha
bela Marília, tudo passa;
a
sorte deste mundo é mal segura;
se
vem depois dos males a ventura,
vem
depois dos prazeres a desgraça.
Estão
os mesmos deuses
sujeitos
ao poder do ímpio fado:
Apolo
já fugiu do céu brilhante,
já
foi pastor de gado.
A
devorante mão da negra morte
acaba
de roubar o bem que temos,
até
na triste campa não podemos
zombar
do braço da inconstante sorte:
qual
fica no sepulcro,
que
seus avós ergueram, descansado;
qual
no campo, e lhe arranca os frios ossos
ferro
do torto arado.
Ah!
enquanto os destinos impiedosos
não
voltam contra nós a face irada,
façamos,
sim, façamos, doce amada,
os
nossos breves dias mais ditosos.
Um
coração que, frouxo,
a
grata posse de seu bem difere,
a
si, Marília, a si próprio rouba.
e
a si próprio fere.
Ornemos
nossas testas com as flores,
e
façamos de feno um brando leito;
prendamo-nos,
Marília, em laço estreito,
gozemos
do prazer de sãos amores.
Sobre
as nossas cabeças,
Sem
que o possam deter, o tempo corre;
e
para nós o tempo que se passa
também,
Marília, morre.
Com
os anos, Marília, o gosto falta;
e
se entorpece o corpo já cansado;
triste,
o velho cordeiro está deitado;
e
o leve filho, sempre alegre, salta.
A
mesma formosura
é
dote que só goza a mocidade:
rugam-se
as faces, o cabelo alveja,
mal
chega a longa idade.
Que
havemos de esperar, Marília bela?
que
vão passando os florescentes dias?
As
glórias que vêm tarde, já vêm frias,
e
pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Ah!
não, minha Marília,
aproveite-se
o tempo, antes que faça
o
estrago de roubar ao corpo as forças,
e
ao semblante a graça!
Tomás
Antônio Gonzaga escreveu também Cartas Chilenas, um longo poema satírico
que faz uma crítica ao então governador da capitania, Luis da Cunha Meneses.
A
obra é um jogo de disfarces: Fanfarrão Minésio é o pseudônimo do
governador; chilenas equivale a mineiras, Santiago, de
onde são assinadas, equivale a Vila Rica. O autor das cartas é Critilo,
e seu destinatário, como Doroteu.
1ª
Carta (fragmentos)
Não
cuides, Doroteu, que vou contar-te por verdadeira história uma novela da classe
das patranhas, que nos contam verbosos navegantes, que já deram ao globo deste
mundo volta inteira. Uma velha madrasta me persiga, uma mulher zelosa me
atormente e tenha um bando de gatunos filhos, que um chavo não me deixem, se
este chefe não fez ainda mais do que eu refiro.
................................................................................
Tem pesado semblante, a cor é baça, o corpo de estatura um tanto esbelta,
feições compridas e olhadura feia; tem grossas sobrancelhas, testa curta, nariz
direito e grande, fala pouco em rouco, baixo som de mau falsete; sem ser velho,
já tem cabelo ruço, e cobre este defeito e fria calva à força de polvilho que
lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo no gordo rocinante escarranchado,
as longas calças pelo embigo atadas, amarelo colete, e sobre tudo vestida uma
vermelha e justa farda.
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